Foi com a inauguração da Ponte Internacional da Fraternidade, entre Foz do Iguaçu e Puerto Iguazú, no final de novembro de 1985, que os primeiros presidentes civis do Brasil e da Argentina, após anos de desconfianças mútuas entre regimes militares surgidos em contextos de guerra fria, assinaram a Declaração do Iguaçu, primeiro passo no processo de integração que culminaria com a criação do Mercosul.
Quatro meses antes, no dia 13/07/85, o músico Bob Geldof organizou o célebre Live Aid, megaevento beneficente com a participação dos artistas mais populares do planeta, que arrecadaria US$ 127 milhões para combater a fome na Etiópia. Difícil afirmar se o Live Aid contribuiu para acelerar o fim da guerra fria. Nesse mesmo dia, eventos semelhantes nele inspirados ocorreram em vários outros países. A retransmissão ao vivo da apresentação da banda de rock soviética Autograph, direto de Moscou, pelo próprio evento original, pode ter criado um ambiente mais favorável para Mikhail Gorbatchev avançar com as suas reformas na URSS. Antes disso, um dia após “Do They Know It’s Christmas? alcançar o topo das paradas de sucesso, o casal Gorbatchev chegava a Londres, a convite da primeira-ministra britânica para se reunir, pela primeira vez com ela. Margareth Thatcher mantinha uma relação especial com Ronald Reagan, a ponto de, na guerra das Malvinas/Falklands de 1982, os Estados Unidos terem preferido favorecer o Reino Unido, parceiro na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), em detrimento dos seus compromissos de segurança coletiva assumidos com a Argentina no seio da OEA (Organização dos Estados Americanos). A desmoralização do regime militar comandado por Galtieri, nessa desastrosa aventura bélica contra a presença do Reino Unido nessas ilhas, acabou por acelerar o processo de democratização na Argentina. Portanto, as impressões positivas a respeito de Gorbatchev, que a dama de ferro transmitiria a Reagan em dezembro de 1984, facilitariam a subsequente aproximação entre Reagan e Gorbatchev, em Genebra, apenas dez dias antes da Declaração do Iguaçu.
Criado esse ambiente de diálogo entre as duas superpotências, Gorbatchev implantaria as reformas e, em dezembro de 1988, anunciaria na ONU que a União Soviética não interviria mais em seus estados satélites na Europa. Ciente disso, Otto de Habsburgo, então presidente da União Pan-Europeia, convenceu o governo húngaro a planejar um evento que servisse como cortina de fumaça para testar a reação de Gorbachev à abertura da cortina de ferro. Para tal, promoveu o “Piquenique Pan-Europeu” na fronteira austro-húngara, no dia 19/08/89. Essa confraternização desencadearia uma reação em cadeia pacífica, que culminaria com a reunificação alemã, a queda da cortina de ferro e a desintegração do bloco oriental. A abertura dos postos fronteiriços pelas autoridades húngaras gerou a primeira fissura irreversível na cortina de ferro, após a fuga de cerca de 600 cidadãos da Alemanha Oriental (RDA) para a Ocidental (RFA).
O Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, entre o Brasil e a Argentina, que entrou em vigor na semana seguinte a esse piquenique, previa o estabelecimento de um mercado comum dentro de um período de 10 anos. Já o Tratado de Assunção de 1991, assinado também pelo Paraguai e Uruguai para constituir o Mercosul, previa que esse mercado comum seria alcançado no final de 1994. Atualmente, o Mercosul já assinou tratado de livre comércio com a UE, mas as capitais nacionais dos Estados-Partes nem se entendem quanto à eventual redução ou flexibilização da TEC de uma união aduaneira que já é imperfeita.
No pós-guerra fria, a União Europeia (UE), mediante vultosos investimentos em entidades subnacionais de países aos quais ela se alargou, conseguiu atravessar a antiga cortina de ferro. Contudo, o Mercosul, constituído nesse mesmo embalo que poderia levar ao “fim da história”, ainda não conseguiu atravessar as cortinas d’água, ao longo do eixo de capricórnio do cone sul, onde as entidades subnacionais se entrelaçam no caminho comum do bloco rumo ao Pacífico. Isso, porque o eixo de desenvolvimento dos quatro Estados-Partes platinos do Mercosul, tendeu a articular-se nacionalmente, a partir de suas capitais nacionais, de modo separado, apenas no lado Atlântico e oriental do cone sul. Desperdiçou-se, assim, o efeito multiplicador das oportunidades fabulosas de integração mundial que o eixo da geografia comum do cone sul naturalmente oferece, tanto no lado oriental quanto ocidental.
Para que esse bloco do cone sul, tão necessário para a retomada econômica pós-pandêmica, finalmente se torne operacional, o GRIMP – Grupo Impulsor del Proyecto Iguassu-Aguas Grandes propõe que os Estados-Partes do Mercosul voltem ao Paraná para assinarem um Tratado de Paz Perpétua e autorizarem a execução de projetos de efetiva integração metropolitana na região trinacional Brasil-Argentina-Paraguai. Dessa forma, o bloco ganharia dinâmica própria e rumo, que beneficiariam os seus Estados-Partes, bem como a UE e os seus Estados-Membros, caso queiram cooperar com o Mercosul para resgatarem as vantagens de negócios e atração de investimentos estrangeiros relacionados à inexorabilidade da travessia de uma nova cortina rumo a um “fim da história” mais sustentável, pois as possibilidades de alargamento na antiga cortina de ferro estão a se esgotar.
E, a próxima vez que ouvir a canção “Heroes”, na voz do David Bowie, um dos pontos mais altos do Live Aid original, pense onde ainda seria possível jovens apaixonados tentarem atravessar heroicamente uma “cortina”? Em uma Berlim já logisticamente integrada e sem muro, ou em uma tríplice fronteira logística e burocraticamente separada pelas cortinas d’água? Pense na travessia das regiões metropolitanas trans-fronteiriças e ribeirinhas europeias de Lille ou de Estrasburgo, e como elas poderiam servir de modelo para iniciarmos essa gloriosa travessia logística integrada e conjunta das cortinas d’água rumo ao Pacífico.
Assim, após séculos, as lendárias e simbólicas lágrimas de tristeza de Naipi, se transformariam em lágrimas de felicidade e esperança, pois, em espírito, ela poderia, agora, se unir novamente a Tarobá.
Leia o artigo escrito pelo nosso Vice-presidente Adriano Greco da Fonseca ao Jornal de Relações Internacionais (JRI).